Capítulo 16 rainha Maria

CAPÍTULO 16 - Perseguições na Inglaterra durante o reinado da Rainha Maria A prematura morte do célebre e jovem monarca Eduardo IV causou acontecimentos do mais extraordinários e terríveis que jamais tiveram lugar desde os tempos da encarnação de nosso bendito Senhor e Salvador em forma humana. Este triste acontecimento se converteu logo em tema de geral lamentação. A sucessão ao trono britânico chegou a ser objeto de disputa, e as cenas que se sucederam foram uma demonstração da séria aflição na que estava envolvido o reino. Conforme foram desenvolvendo-se mais e mais as conseqüências desta perda para a nação, a lembrança de seu governo veio a ser mais e mais um motivo de gratidão generalizada. A terrível expectativa que em seguida se apresentou aos amigos da administração de Eduardo, sob a direção de seus conselheiros e servos, veio a ser algo que as mentes reflexivas se viram obrigadas a contemplar com a mais alarmada apreensão. A rápida aproximação que se fez a uma total inversão das atuações do reinado do jovem rei mostrava os avanços que deste modo iam rumo a uma resolução total na direção das questões públicas tanto na Igreja como no estado. Alarmados pela condição na que provavelmente ficaria implicado o reino pela morte do rei, a tentativa por impedir as conseqüências, que se viam sobrevir com muita claridade, produziu os mais sérios e fatais efeitos. O rei, em sua longa e prolongada doença, foi induzido a fazer testamento, no qual outorgava a coroa inglesa a Lady Jane, filha do duque de Suffolk, quem estava casada com LordeGuilford, filho do duque de Northumberland, e que era neta da segunda irmã do rei Henrique, casada com Carlos, duque de Suffolk. Por este testamento se passou por alto a sucessão de Maria e Elizabete, suas duas irmãs, pelo temor à volta ao sistema do papado; e o conselho do rei, com os chefes da nobreza, o alcaide maior da cidade de Londres, e quase todos os juízes e os principais legisladores do reino, assinaram seus nomes neste documento, como sanção a esta medida. O Lordeprincipal da Justiça, embora um verdadeiro protestante e reto juiz, foi o único em negar-se a colocar seu nome em favor de Lady Jane, porque já havia expressado sua opinião de que Maria tinha direito de tomar as rédeas do governo. Outros objetavam que Maria fosse colocada no trono, pelos temores que tinham de que pudesse casar com um estrangeiro, e com isso pôr a coroa em considerável perigo. Também a parcialidade que ela demonstrava em favor do papismo deixava bem poucas dúvidas nas mentes de muitos de que seria induzida a reavivar os interesses do Papa e a mudar a religião que tinha sido usada nos dias de seu pai, o rei Henrique, como nos de seu irmão Eduardo; porque durante todo este tempo tinha ela manifestado uma grande teimosia e inflexibilidade, como será evidente em base à carta que enviou aos lorde s do conselho, pela qual apresentou seus direitos à coroa após a morte de seu irmão. Quando esta teve lugar, os nobres, que se haviam associado para impedir a sucessão de Maria, e que tinham sido instrumentos em promover e talvez aconselhar as medidas de Eduardo, passaram rapidamente a proclamar a Lady Jane Gray como rainha da Inglaterra, na cidade de Londres e em várias outras cidades populosas do reino. Embora era jovem, possuía talentos de natureza superior, e seu aproveitamento sob um mui excelente tutor tinha-lhe dado grandes vantagens. Seu reinado durou somente cinco dias, porque Maria, conseguindo a coroa por meio de falsas promessas, empreendeu rapidamente a execução de suas expressas intenções de extirpar e queimar a cada protestante. Foi coroada em Westminster da maneira usual, e sua ascensão foi o sinal para o início da sangrenta perseguição que teve lugar. Tendo obtido a espada da autoridade, não foi remissa a empregá-la. Os partidários de lady Jane Gray estavam destinados a sentir sua força. O duque de Northumberland foi o primeiro em experimentar seu selvagem ressentimento. Depois de um mês de encerro na Torre foi condenado, e levado ao cadafalso para sofrer como traidor. Devido à variedade de seus crimes provocados por uma sórdida e desmesurada ambição, morreu sem que ninguém se compadecesse dele nem o lamentasse. As mudanças que se sucederam com toda celeridade declararam de maneira inequívoca que a rainha era pouco afeiçoada ao atual estado da religião. O doutor Poynet foi afastado para dar lugar a Gardiner como bispo de Winchester, o qual recebeu também o importante posto de LordeChanceler. O doutor Ridley foi expulso da sede de Londres, e Bonne colocado em seu lugar. J. Story foi banido do bispado de Chichester, para pôr ali o doutor Day. J. Hooper foi enviado predo a Fleet, e o doutor Heath instalado na sede de Worcester. Miles Coverdale foi também efastado de Exeter, e o doutor Vesie tomou seu lugar naquela diocese. O doutor Tonstail foi também ascendido à sede de Durham. Ao observar-se e indicar-se estas modificações, foram oprimindo-se e turbando-se mais e mais os corações dos bons homens; mas os malvados se regozijavam. Aos mentirosos tanto dava como fosse a questão; mas àqueles cujas consciências estavam ligadas à verdade perceberam como se acendiam as fogueiras que depois deveriam servir para destruição de tantos verdadeiros cristãos. As palavras e a conduta de lady Jane Gray no cadafalso A seguinte vítima foi a gentil lady Jane Gray, que, por sua aceitação da coroa ante as insistentes petições de seus amigos, incorreu no implacável ressentimento de Maria. Ao subir no cadafalso, se dirigiu com estas palavras aos espectadores: "Boa gente, vim aqui para morrer, e por uma lei tenho sido condenada a isso. O fato contra a majestade da rainha era ilegítimo, e que eu acedesse a isso; porém acerca da tomada de decisão e o desejo do mesmo por minha parte ou em meu favor, me lavou neste dias as mãos em minha inocência diante de Deus e diante de vós, boa gente cristã". E fez então o movimento de esfregar-se as mãos, nas que tinha seu livro. Depois disse: "Peço-vos a todos, boa gente cristã, que me sejais testemunhas de que morro como boa cristã, e que espero ser salva somente pela misericórdia de Deus no sangue de seu único Filho Jesus Cristo, e não por nenhum outro médio; e confesso que quando conheci a Palavra de Deus a descuidei, amando-me a mim mesma e ao mundo, e por isso felizmente e com merecimento me sobreveio esta praga e castigo; porém dou graças a Deus que em sua bondade me deu desta maneira tempo e descanso para arrepender-me. E agora, boa gente, enquanto estou viva, rogo-vos que me auxilieis com vossas orações". Depois, ajoelhando-se, se dirigiu a Feckenham, dizendo-lhe: "Direi este Salmo?", e ele disse: "SIM". Então pronunciou o Salmo Miserere meu Deus em ingles, da forma mais devota até o final; depois se levantou, e deu a sua dama, a senhora Ellen, suas luvas e seu lenço, e seu livro ao senhor Bruges; depois desamarrou seu vestido, e o carrasco se aproximou para ajudá-la a tirá-lo; mas ela, pedindo-lhe que a deixasse sozinha, se voltou para suas duas damas, que a ajudaram a tirá-lo, e também lhe deram um bonito lenço com o qual vendar seus olhos. Depois o carrasco se ajoelhou, e lhe pediu perdão, dando-o ela bem disposta. Depois pediu-lhe que ficasse de pé sobre a palha, e ao fazê-lo viu o talho. Então disse: "Rogo-te que acabes comigo rapidamente". Depois se ajoelhou, dizendo: "Me decapitarás antes que a estique?" E o verdugo disse: "Não, senhora". Então se vendou os olhos, e tateando para achar o talho, disse: "Que vou fazer? Onde está, onde está?". Um dos que ali estavam a conduziu, e ela pus a cabeça sobre o talho, e depois disse: "Senhor, em tuas mãos encomendo meu espírito". Assim acabou sua vida, no ano do Senhor de 1554, o 12 de fevereiro, tendo por volta de dezessete anos. Assim morreu lady Jane; e naquele mesmo dia foi decapitado lorde Guilford, seu marido, um dos filhos do duque de Northumberland; eram dois inocentes em comparação com aqueles que estavam sobre eles. Porque eram muito jovens, e aceitaram ignorantemente aquilo que outros haviam tramado, consentindo que por proclamação pública fosse arrebatado para outros o que lhes fora dado a eles. Acerca da condenação desta piedosa dama, deve lembrar-se que o juiz Morgan, que pronunciou sentença contra ela, caiu louco depois de tê-la condenado, e em seus delírios clamava continuamente que tiraram a lady Jane de diante dele, e assim acabou sua vida. O 21 do mesmo mês, Henrique, duque de Suffolk, foi decapitado na Torre, o quarto dia depois de sua condena; naquele mesmo tempo muitos cavalheiros e fidalgos foram condenados, dos quais alguns foram executados em Londres, e outros em outros condados. Entre eles se encontrava lorde Tomás Gray, irmão do duque de Suffolk, que foi apresado não muito tempo depois no norte de Gales, e executado pela mesma causa. Sir Nicolas Throgmorton escapou muito apressadamente. John Rogers, vicário do Santo Sepulcro, e leitor de são Paulo em Londres John Rogers se educou em Cambridge, e foi depois muitos anos capelão dos mercadores empurrados a Amberes, em Brabante. Ali conheceu o célebre mártir William Tyndale, e a Miles Coverdale, ambos voluntariamente exilados de seu país por sua aversão à superstição e idolatria papal. Eles foram os instrumentos de sua conversão, e se uniu com eles na produção daquela tradução da Bíblia ao inglês conhecida como a "Tradução de Tomás Mathew". Pelas Escrituras soube que os votos ilegítimos podiam ser legitimamente quebrantados; por isso se casou e se dirigiu a Wittenberg, na Saxônia, para aumentar seus conhecimentos; ali aprendeu a língua alemã, e recebeu o encargo de uma congregação, cargo que desempenhou fielmente durante muitos anos. ao aceder o rei Eduardo ao trono, se foi a Saxônia para impulsionar a obra da Reforma na Inglaterra. Após um tempo, Nicolas Ridley, que era então o bispo de Londres, o fez canônigo da catedral de são Paulo, e o decano e o capítulo o designaram leitor da lição de teologia. Ali continuou até o Ascenso ao trono da rainha Maria, quando foram desterrados o Evangelho e a verdadeira religião, e introduzido o Anticristo de Roma, com sua superstição e idolatria. A circunstância pela qual o senhor Rogers predicou em Paul's Cross depois que a rainha Maria chegasse à Torre, já foi relatada. Confirmou ele em seus sermões a doutrina ensinada na época do rei Eduardo, exortando o povo a guardar-se da abominação do papismo, da idolatria e da superstição. Por esta razão foi chamado a dar conta, mas se defendeu de maneira tão capaz que foi pelo momento libertado. Mas a proclamação da rainha proibindo a verdadeira predicação deu a seus inimigos um novo pretexto contra ele. Por isso, foi chamado de novo ante o conselho, e se ordenou seu arresto domiciliário. Ficou então em sua casa, embora houvesse podido escapar e foi quando viu que o estado da verdadeira religião era desesperado. Sabia que não lhe faltaria um salário na Alemanha; e não podia esquecer sua mulher nem seus dez filhos, nem deixar de tentar obter os meios para suprir suas necessidades. Mas todas estas coisas foram insuficientes para induzi-lo a ir embora, e, quando foi chamado a responder a causa de Cristo, a defendeu firmemente, e pus sua vida em perigo por esta causa. Depois de um longo encarceramento em sua própria casa, o agitado Bonner, bispo de Londres, o fez encerrar em Newgate, lançando-o em companhia de ladrões e assassinos. Depois que o senhor Rogers tiver sofrido um estrito encarceramento durante um longo tempo, entre ladrões, e tendo sofrido muitos interrogatórios e um tratamento muito pouco caritativo, foi finalmente condenado da forma mais injusta e cruel por Stephen Gardiner, bispo de Winchester, o 4 de fevereiro de 1555. Uma segunda-feira pela manhã, foi repentinamente advertido pelo guarda de Newgate que se preparasse para a fogueira. Estava profundamente dormido, e lhes deu muito trabalho acordá-lo. ao final, desperto e levantado, ao ser apressado, disse: "Se é assim, não há necessidade de amarrar-me os sapatos". Assim o levaram, primeiro ao bispo Bonner, para que o degradasse. Feito isto, lhe fez um único pedido ao bispo Bonner, e este lhe perguntou de que se tratava. O senhor Rogers lhe pediu para falar um breve tempo com sua mulher antes de ser queimado; porém o bispo se negou. Quando chegou o momento de ser levado de Newgate a Smithfield, onde seria executado, um xerife chamado Woodroofe se aproximou do senhor Rogers e lhe perguntou se queria desdizer-se de sua abominável doutrina e da má opinião acerca do Sacramento do altar. O senhor Rogers respondeu: "O que tenho predicado o selarei com meu sangue". Então Woodroofe lhe disse: "Tu és um herege". "Isto se saberá", replicou o senhor Rogers "no Dia do Juízo". "Bem", disse Woodroofe, "nunca orarei por ti". "Porém eu sim orarei por ti", disse-lhe o senhor Rogers; assim foi tirado naquele mesmo dia, o 4 de fevereiro, e levado pelos xerifes até Smithfield, dizendo pelo caminho o Salmo Miserere, e deixando o povo surpreendido com sua inteireza, dando louvores a Deus e gratidão por tudo. Ali, em presença do senhor Rochester, controlador da Casa da Rainha, de Sir Richard Sothwell, ambos xerifes e uma grande multidão, foi reduzido a cinzas, lavando-se as mãos na chama enquanto ardia. Pouco antes de ser queimado lhe trouxeram o indulto, caso se desdissesse; mas negou-se de forma total. Ele foi o primeiro mártir de toda a bendita companhia que sofreu em tempos da Rainha Maria. Sua mulher e filhos, onze em total, dez que podiam caminho e um bebê de peito, foram vê-lo no caminho, enquanto se dirigia a Smithfield. O triste espetáculo de ver sua própria carne e sangue não o moveu, contudo, a debilidade, senão que aceitou sua morte com constância e ânimo, em defesa e na batalha do Evangelho de Cristo. O reverendo Lawrence Saunders O senhor Saunders, depois de passar algum tempo na escola de Eaton, foi escolhido para ir ao King's College, em Cambridge, onde permaneceu durante três anos, crescendo em conhecimentos e aprendendo muito por aquele breve espaço de tempo. Pouco depois saiu da universidade e voltou à casa de seus pais, mas logo voltou a Cambridge para seguir estudando, e começou a agregar ao conhecimento do latim o estudo das línguas gregas e hebraica, e se deu ao estudo das Sagradas Escrituras, para capacitar-se melhor para o ofício de predicador. A começo do reinado de Eduardo, quando foi introduzida a verdadeira religião de Deus, depois de obter licença começou a predicar, e foi tão do agrado dos que então tinham autoridade, que o designaram para ler um conferencia de teologia no College de Fothringham. Ao dissolver-se o College de Fothringham, foi designado como leitor da catedral em Litchfield. Depois de um certo tempo, saiu daí com uma prebenda em Leicestershire chamada Church-Langton, onde teve residência, ensinou com diligência, e manteve casa aberta. Dali foi chamado a tomar uma prebenda na cidade de Londres chamada Todos Santos, em Bread Street. Depois disso predicou em Northhampton, nunca misturando-se com o estado, más pronunciando-se abertamente sua consciência contra os papistas que podiam logo voltar a levantar cabeça na Inglaterra, como uma justa peste pelo escasso amor que mostrava a nação inglesa então pela bendita Palavra de Deus, que tinha-lhes sido oferecida de forma tão abundante. O partido da rainha se encontrava ali, e ao ouvi-lo se sentiram ofendidos por seu sermão por isso o levaram preso. Mas em parte por seu amor a seus irmão e amigos, que eram os principais agentes da rainha entre eles, e em parte porque não tinha quebrantado lei alguma com sua predicação, o deixaram ir. Alguns de seus amigos, ao ver aquelas terríveis ameaças, lhe aconselharam que fugisse do reino, o que ele recusar a fazer. Mas ao ver que seria privado por meios violentos de fazer o bem naquele lugar, voltou a Londres a visitar sua grei. Na tarde do domingo 15 de outubro de 1554, enquanto lia em sua igreja para exortar a seu povo, o bispo de Londres o interrompeu, enviando um xerife para levá-lo. Disse o bispo que em sua caridade se comprazia em deixar passar sua traição e sedição por enquanto, mas que estava disposto a demonstrar que era herege ele e todos os que ensinavam que a administração dos Sacramentos e todas as ordens da Igreja são mais puros quanto mais se aproximam à ordem da Igreja primitiva. Depois de uma longa conversação acerca desta questão, o bispo lhe pediu que escrevesse o que acreditava acerca da transubstanciação. Lawrence Saunders o fez, dizendo: "Meu senhor, vós buscais meu sangue, e o tereis; rogo a Deus que sejais batizado nele de modo tal que desde então abomineis o derramamento de sangue e vireis um homem melhor". Acusado de contumácia, as severas réplicas do senhor Saunders ao bispo (que em épocas passadas, para obter o favor de Henrique VIII havia escrito e feito imprimir um livro de verdadeira obediência, no qual havia declarado abertamente que Maria era uma bastarda), o irritaram de tal modo que exclamou: "Levai este frenético insensato à prisão". Depois deste bom e fiel mártir passou encarcerado um ano e três meses, os bispos finalmente o chamaram, a ele e a seus companheiros de prisão, para serem interrogados ante o conselho da rainha. Acabado seu interrogatório, os oficiais o tiraram do lugar, e ficaram fora até que o resto de seus companheiros fossem igualmente interrogados, para levá-los a todos junto de novo ao cárcere. Depois de sua excomunhão e entrega ao braço secular, foi levado pelo xerife de Londres ao Compter, um cárcere em sua própria paróquia de Bread Stree, com o qual se regozijou grandemente, porque ali encontrou um companheiro de cárcere, o senhor Cardmaker, com quem teve muitas consoladoras conversações cristãs; e porque quando saísse daquela prisão, como antes em seu púlpito, poderia ter a oportunidade de predicar a seus fiéis. O 4 de fevereiro, Bonner, bispo de Londres, acudiu à cela para degradá-lo; no dia seguinte, pela manhã, o xerife de Londres o entregou a certos membros da guarda da rainha, que tinham ordem de levá-lo à cidade de Coventry, para ali ser queimado. Quando houveram chegado em Coventry, um coitado sapateiro que costumava servi-lo com sapatos, acudiu a ele e lhe disse: "Oh, meu bom senhor, que Deus lhe fortaleça e console". "bom sapateiro", lhe respondeu o senhor Saunders, "te peço que orem por mim, porque sou o homem mais inapropriado que jamais tenha sido designado para esta elevada missão; porém meu Deus e Pai amante e cheio de graça é suficiente para fazer-me forte como seja necessário". No dia seguinte, o 8 de fevereiro de 1555 foi levado ao lugar da execução, no parque fora da cidade. Foi numa túnica velha e camisa, descalço, e amiúde se prostrava em terra para orar. Quando chegaram perto do lugar, o oficial designado para cuidar da execução disse ao senhor Saunders que ele era um dos que faziam mal ao reino da rainha, porém que se retratasse haveria perdão para ele. "Não serei eu", respondeu o santo mártir, "senão vós outros os que fazeis dano ao reino. O que eu sustento é o bendito Evangelho de Cristo; acredito nele, o ensinei, e jamais o revogarei". Depois o senhor Saunders se dirigiu lentamente para o fogo, se ajoelhou em terra e orou. Depois se levantou, abraçou a estaca e disse várias vezes: "Bem-vinda, cruz de Cristo! Bem-vinda, vida eterna!". Aplicaram então fogo á pira, e ele, abrumado pelas terríveis labaredas, caiu dormido em braços do Senhor Jesus. A história, encarceramento e interrogatório do senhor John Hooper, bispo de Worcester e Gloucester John Hooper, estudante e graduado da Universidade de Oxford, sentiu-se tão movido com tão fervoroso desejo de amar e conhecer as Escrituras que se viu obrigado a ir embora dali, e ficou em casa de Sir Tomás Arundel como mordomo, até que Sir Tomás soube de suas opiniões e religião, que ele não favorecia de modo algum, ainda que favorecesse cordialmente sua pessoa e condição e anelasse ser seu amigo. O senhor Hooper teve agora a prudência de abandonar a casa de Sir Tomás e foi a Paris, porém pouco tempo depois voltou para Inglaterra, e foi acolhido pelo senhor Sentlow, até o momento em que de novo foi fustigado e perseguido, com o que voltou a passar para a França, e às terras altas da Alemanha; ali, entrando em contato com homens eruditos, recebeu deles livre e afetuosa hospitalidade, tanto na Basiléia como especialmente em Zurique, pelo senhor Bullinger, que foi especialmente amigo dele; ali também casou com sua mulher, que era de Borgonha, e se aplicou diligentemente ao estudo da língua hebraica. No final, quando Deus teve o beneplácito de dar fim ao sangrento tempo dos seis artigos e dar-nos o rei Eduardo para reinar sobre este reino, com alguma paz e repouso para a Igreja, entre os muitos outros exilados que voltaram à pátria se encontrava também o senhor Hooper, quem voltou conscientemente, não para ausentar-se de novo, senão buscando o momento e a oportunidade, oferecendo-se para impulsionar a obra do Senhor até os limites de sua capacidade. Quando o senhor Hooper se despediu do senhor Billinger e de seus amigos em Zurique, se dirigiu de volta à Inglaterra no reinado do rei Eduardo VI, e chegando a Londres, começou a predicar, a maioria dos dias duas vezes, ou pelo menos uma vez por dia. Em seus sermões, conforme seu costume, corrigia o pecado e falava severamente Cintra a iniqüidade do mundo e os abusos corrompidos da Igreja. O povo comparecia em grandes multidões e grupos a ouvir sua voz a diário, como se fosse o som mais melodioso e a música da harpa de Orfeu, de modo que às vezes, quando predicava, a igreja estava tão lotada que não cabia nem uma agulha. Era fervoroso em seu ensino, eloqüente em sua palavra, perfeito nas Escrituras, infatigável em sua tarefa, exemplar em sua vida. Tendo predicado ante a majestade real, logo foi designado bispo de Gloucester. Prosseguiu dois anos naquele cargo, e se comportou tão bem que seus inimigos não puderam achar ocasião contra ele, e depois foi feito bispo de Worcester. O doutor Hooper cumpriu a função do mais solícito e vigilante pastor por espaço de dois anos e algo a mais, enquanto o estado da religião, no reinado do rei Eduardo, foi sadio e florescente. Depois de ser sido citado a comparecer ante Bonner e o doutor Heath, foi levado ao Conselho, acusado em falso de dever dinheiro à rainha, e no ano seguinte, 1554, escreveu relato dos duros tratos recebidos durante um confinamento de dezoito meses no Fleet, e depois de seu terceiro interrogatório, o 28 de janeiro de 1555, em St. Mary Overy's, ele e o reverendo Rogers foram levados ao Compter em Southwark, onde foram deixados até o dia seguinte às nove da manhã, para ver se voltavam para trás. "Venha, irmão Rogers", lhe disse o doutor Hooper, "devemos tomar esta questão por nós, e começar a sermos assados nestas fogueiras?" "Sim, doutor", disse o senhor Rogers, "pela graça de Deus". "Não tenha dúvida alguma", respondeu o doutor Hooper "de que Deus nos dará forças"; e o povo apludia tanto sua tenacidade que apenas se podiam passar. O 29 de janeiro, o bispo Hooper foi degradado e condenado, e o reverendo senhor Rogers foi tratado de forma similar. Ao escurecer, o doutor Hooper foi levado a Newgate pelo meio da cidade; ao passar muitas pessoas saíram a suas portas com luzes, saudando-o e dando graças a Deus pela sua constância. Durante os poucos dias que esteve em Newgate foi freqüentemente visitado por Bonner e outros, mas sem êxito algum. Tal como Cristo foi tentado, assim o tentaram a ele, e depois informaram maliciosamente que se havia retratado. O lugar de seu martírio foi fixado em Gloucester, com o que se regozijou muito, levantando ao olhos ao céu, e louvando a Deus que o enviava entre aquela gente da qual era pastor, para confirmar ali com sua morte a verdade que antes tinha-lhes ensinado. O 7 de fevereiro chegou a Gloucester, por volta das cinco da tarde, e se alojou na casa de um chamado Ingram. Depois de dormir um pouco, se manteve em oração até a manhã; e o resto do dia o dedicou do mesmo modo à oração, exceto um pouco de tempo nas comidas e quando conversava com aqueles que o guarda gentilmente lhe permitia. Sir Anthony Kingston, que antes tinha sido um bom amigo do doutor Hooper, foi designado por uma carta da rainha para que presidisse a execução. Tão logo como viu o bispo prorrompeu em lágrimas. Com entranháveis rogos o exortou a viver. Certo é que a morte é amarga, e que a vida é doce", lhe disse o bispo, "porém, ay! Considera que a morte vindoura é mais amarga, e que a vida vindoura é mais doce". Aquele mesmo dia um menino cego recebeu permissão para ser conduzido à presença do doutor Hooper. Aquele mesmo menino tinha sofrido prisão em Gloucester, não muito tempo antes, por confessar a verdade. "Ah, pobre menino!", disse o bispo, "embora Deus tenha tirado a visão externa, pela razão que Ele saberá melhor, contudo tem dotado tua alma com a visão do conhecimento e da fé. Que Deus te dê graça para que ores a Ele continuamente, para que não percas a visão, porque então estarias certamente cego de corpo e alma". Enquanto o alcaide esperava que se preparasse para a execução, ele expressou sua total obediência, e somente pediu que fosse um fogo rápido que desse fim a seus tormentos. Depois de levantar-se pela manhã, pediu que não deixassem entrar ninguém em sua câmara, para poder ficas a sós até a hora da execução. Por volta das 8 da manhã do dia 9 de fevereiro de 1555 foi tirado, e havia milhares de pessoas congregadas, porque era dia de mercado. A todo o longo do caminho, tendo ordens estritas de não falar, e vendo o povo, que se lamentava amargamente por ele, levantava seus olhos ao céu, e olhava alegremente aos que conhecia; nunca o viram, durante todo o tempo que estivera entre eles antes, com um semblante tão alegre e iluminado como naquela ocasião. Quando chegou no lugar designado para a execução, contemplou sorridente a estaca e os preparativos feitos para ele, perto do grande olmo diante do colégio de sacerdotes, onde costumava predicar antes. Agora, depois de ter entrado em oração, trouxeram uma caixa e a colocaram sobre um banquinho. Na caixa estava o perdão da rainha se ele voltava atrás. Ao vê-lo, exclamou: "Se amais minha alma, tirai isso dali!" Ao ser tirada a caixa, disse lorde Chandois: Já vedes que não há remédio; acabai com ele rapidamente". Agora deram ordem para que se acendesse o fogo. Porém devido a que não havia mais lenha verde que a que podiam trazer dois cavalos, não acendeu rapidamente, e também se passou bastante tempo antes que acendessem as canas sobre a lenha. No final acendeu o fogo em sua volta, mas havendo muito vento naquele lugar, e sendo uma manhã glacial, afastava a chama a seu redor, pelo que apenas foi tocado pelo fogo. Após um tempo trouxeram lenha seca, e se acendeu um novo foco com brasas (porque não havia já mais canas), e somente queimou a parte de baixo, mas não tinha muita chama por acima, devido ao vento, embora lhe queimou o cabelo e lhe abrasou um pouco a pele. Durante o tempo deste fogo, já desde a primeira labareda, orou, dizendo mansamente, e não muito forte, como algum sem dor: "Oh, Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim e recebe minha alma!" Quando se houve apagado o segundo fogo, se esfregou ambos olhos com as mãos, e olhando as pessoas, disse-lhe com voz calma e forte: "Pelo amor de Deus, boa gente, colocai mais fogo!". Enquanto isso seus membros inferiores ardiam, mais as brasas eram tão poucas que a chama somente chamuscava suas partes superiores. Acenderam o terceiro fogo após um tempo, que era mais intenso que os outros dois. Neste fogo ele orou em alta voz: "Senhor Jesus, tem misericórdia de mim! Senhor Jesus, recebe meu espírito!" E estas foram as últimas vozes que se ouviram. Mas quando tinha a boca escurecida e sua língua estava tão inchada que não podia falar, catacumba se moveram seus lábios até ficarem encolhidos sobre as gengivas, e se batia no peito com suas mãos até que um de seus braços se desprendeu, e depois continuou batendo com a outra,mas enquanto saia gordura, sangue e água dos extremos dos dedos; finalmente, ao renovar-se o fogo, desapareceram suas energias, e sua mão ficou fixa após bater na corrente sobre seu peito. Depois, inclinando-se para a frente, entregou seu espírito. Assim permaneceu três quartos de hora ou mais no fogo. Como um cordeiro, paciente, suportou esta atroz tortura, não mexendo-se nem para atrás nem para nenhum lado, senão que morreu tão aprazivelmente como um bebê em seu berço. E agora reina, não tenho dúvida, como bendito mártir nos gozos do céu, preparados para os fiéis em Cristo desde antes da fundação do mundo, e pela constância dos quais todos os cristãos devem louvar a Deus. A vida e conduta do doutor Rowland Taylor de Hadley O doutor Rowland Taylor, vigário de Hadley, em Suffolk, era homem de eminente erudição, e tinha sido admitido ao grau de doutor de lei civil e canônica. Sua adesão aos princípios puros e incorruptos do cristianismo o recomendaram ao favor e à amizade do doutor Cranmer, arcebispo de Canterbury, com quem viveu muito tempo, até que por meio de seu interesse obteve o vicariato de Hadley. Não só sua palavra lhes predicava, senão que toda sua vida e conversação era um exemplo de vida cristã não fingida e de verdadeira santidade. Estava isento ed soberba; era humilde e gentil como uma criança, de modo que ninguém era tão pobre que não pudesse recorrer a ele como a um pai, com toda liberdade; e sua humildade não era infantil ou cobarde, senão que, quando a ocasião o demandava e o lugar o requeria, era firme em repreender o pecado e os pecadores. Ninguém era demasiado rico para que ele não fosse a repreendê-lo claramente por suas faltas, com recriminações tão solenes e graves como convinham a um bom clérigo e pastor. Era um homem disposto a fazer o bem a todos; perdoava bem disposto a seus inimigos, e nunca tentou fazer dano algum e ninguém. Era, para os pobres que eram cegos, coxos, que estavam doentes, deitados no leito da dor, ou que tinham muitos filhos, um verdadeiro padre, um protetor solícito, e um provedor diligente, de forma que fez que os fiéis fizessem um fundo geral para eles; e ele mesmo (além do alívio contínuo que sempre encontravam em sua casa) dava uma porção digna a cada ano às oferendas comuns. Sua mulher era também uma matrona honrada, discreta e sóbria, e seus filhos, e seus filhos estavam bem educados, criados no temor de Deus e numa boa instrução. Era boa sal da terra, com um sadio mordente para as formas corrompidas dos malvados; luz na casa de Deus, colocada num candeeiro para que o imitassem e continuassem todos os homens bons. Assim continuou este bom pastor entre sua grei, governando-os e conduzindo-os através do deserto deste malvado mundo, todos os dias daquele santo e inocente rei de abençoada memória, Eduardo VI. Porém a sua morte, e com a ascensão da Rainha Maria ao trono, não escapou à negra nuvem que se abateu também sobre os santos; porque dois membros de sua paróquia, um advogado chamado Foster e um comerciante chamado Clark, guiados pelo cego zelo, decidiram que se celebrasse a missa com todas suas formas de superstição, na igreja paroquial de Hadley, na segunda-feira antes da Páscoa. O doutor Taylor, entrando na igreja, o proibiu estritamente; porém Clarck expulsou o doutor fora da igreja, celebrou a missa e imediatamente informou ao lorde chanceler, bispo de Winchester, de sua conduta, o qual o chamou a comparecer e a dar resposta das acusações que se faziam contra ele. O doutor, ao receber o chamamento, se preparou bem disposto para obedecê-lo, rejeitando o conselho de seus amigos para fugir ao outro lado do mar. Quando Gardiner viu o doutor Taylor, o injuriou, segundo era seu costume. O doutor Taylor escutou os insultos com paciência, e quando o bispo lhe disse: "Como te atreves a olhar-me na cara? Não sabes quem sou eu?", o doutor Taylor respondeu: "Vós sois Stephen Gardiner, bispo de Winchester e lorde chanceler, mas somente sois um homem mortal. Contudo, se eu devesse temer vossa senhoril aparência, por que não temeis vós a Deus, o Senhor de todos nós? Com que rosto aparecereis ante o tribunal de Cristo, e respondereis do juramento que fizestes primeiro ao rei Henrique VIII, e depois a seu filho o rei Eduardo VI?" Continuou sua longa conversação, na que o doutor Taylor falou tão mesurada e severamente a seu antagonista que este exclamou: "Tu és um blasfemo herege! Em verdade blasfemas contra o bendito Sacramento (e aqui tirou o chapéu) e falas em contra da santa missa, que é constituída sacrifício pelos vivos e os mortos!". Depois, o bispo o entregou ao tribunal real. Quando o doutor Taylor chegou ali, encontrou o virtuoso e diligente predicador da Palavra de Deus que era o senhor Bradford, o qual igualmente deu graças a Deus por dar-lhe tão bom companheiro de prisão; e ambos juntos louvaram a Deus, e persistiram em oração, em leitura, e em exortar-se mutuamente. Depois que o doutor Taylor esteve um tempo em cárcere, foi citado para comparecer sob as arcadas da igreja de Bow. Condenado, o doutor Taylor foi enviado a Clink, e os guardas daquele cárcere receberam ordens de tratá-lo mal. Pela noite foi levado a Poultry Compter. Quando o doutor Taylor houve permanecido em Compter por volta de uma semana, o 4 de fevereiro chegou Bonner para degradá-lo, levando consigo ornamentos pertencentes à comédia da missa; porém o doutor recusou aqueles disfarces, que finalmente lhe foram colocados pela força. A noite depois de ser degradado, sua mulher o visitou com seu servo John Hull e com seu filho Tomás, e pela bondade dos carcereiros puderam jantar com ele. Depois de jantar, andando adiante e atrás, deu graça a Deus por sua graça, que lhe tinha dado a fortaleza para manter-se em sua santa Palavra. Com lágrimas oraram juntos, e se beijaram. A seu filho Tomás lhe deu um livro latino que continha os ditados notáveis dos antigos mártires, e no final do mesmo escreveu seu testamento: "Digo a minha esposa e a meus filhos: o Senhor me deu a vós outros, e o Senhor me tira de vós e a vós de mim. Bendito seja o nome do Senhor! Acredito que são bem-aventurados os que morrem pelo Senhor. Deus se cuida dos passarinhos, e conta os cabelos de nossas cabeças. O encontrei a Ele mais fiel e favorável do que possa sê-lo nenhum pai ou marido. Portanto, confiai nEle por meio dos méritos de nosso amado Senhor Jesus Cristo; crede nEle, amai-o, temei-o e obedecei-o. orar a Ele, porque Ele tem prometido ajudar. Não me considereis morto, porque certamente viverei e nunca morrerei. Vou na frente, e vós me seguireis depois a nosso eterno lar". Pela manhã, o xerife de Londres e seus oficiais foram a Compter às duas da madrugada, e levaram o doutor Taylor, e sem luz alguma o conduziram a Woolsalk, uma pousada fora das muralhas, perto de Aldgate. A mulher do doutor Taylor, que suspeitava que naquela noite levariam seu marido, tinha ficado vigiando na entrada da igreja de St. Botolph, junto de Aldgate, tendo suas duas filhas consigo, Elizabete, de treze anos (a qual, órfã de pai e mãe tinha sido adotada pelo doutor Taylor desde os três anos de idade) e outra, Maria, filha carnal do doutor Taylor. Agora, quando o xerife e seu grupo chegaram frente à igreja de St. Botolph, Elizabete gritou: "Pai querido! Mãe, mãe, ali estão levando meu pai!" Então, a mulher gritou: "Rowland, Rowland, onde estás?", porque era uma manhã sumamente escura, e não podiam ver-se bem uns a outros. O doutor Taylor respondeu: "Querida esposa, estou aqui", e se deteve. Os homens do xerife o teriam empurrado para obrigá-lo a prosseguir o caminho, porém o xerife disse: "Detende-vos um pouco, senhores, rogo-vos, e deixai-o falar com sua mulher". Então se detiveram. E ela se aproximou dele, e ele tomou sua filha Maria em seus braços; ele, sua mulher e Elizabete se ajoelharam e oraram a Oração do Senhor, ante o qual o xerife chorou abertamente, como também vários outros da companhia. Depois de ter orado, se levantou e beijou a sua mulher, e lhe deu a mão, dizendo-lhe: "Adeus, minha querida esposa; encoraja-te, porque tenho a consciência em paz. Deus suscitará um pai para minhas filhas". A todo o longo do caminho, o doutor Taylor esteve gozoso e feliz, como dispondo-se para ir ao banquete ou festa de bodas mais esplendoroso. Disse muitas coisas notáveis ao xerife e aos cavalheiros da guarda que o levavam, e freqüentemente os moveu às lágrimas, com seus fervorosos chamamentos a arrepender-se e a emendar suas vidas malvadas e perversas. Outras várias vezes os assombrou e alegrou, ao vê-lo tão constante e firme, carente de temor, gozoso de coração, e feliz de morrer. Quando chegou a Aldham Common, o lugar onde devia sofrer, ao ver tanta multidão reunida, perguntou: "Qual é este lugar, e para que se tem reunido tanta gente aqui?" Lhe responderam: "Este lugar se chama Aldham Common, o lugar de teu sofrimento; e esta gente tem vindo a contemplar-te". Então ele disse: "Graças a Deus, já quase estou em casa!", e desmontou de seu cavalo e com ambas as mãos se arrancou o capuz da cabeça. Seu cabelo tinha sido raspado e cortado como se cortava cabelo aos loucos, e o custo disto o havia sufragado o bom bispo Bonner de seu próprio bolso. Mas quando o povo viu seu reverendo e ancião rosto, com uma longa barba branca, prorromperam todos em lágrimas, chorando e clamando: "Deus te salve, bem doutor Taylor! Que Jesus Cristo te fortaleça e te ajude! Que o Espírito Santo te conforte!" e outros bons desejos parecidos. Depois de orar foi até a estaca e a beijou, e entrou num barril de breu que tinham colocado para que entrasse nele, e ficou de pé dando-lhe as costas à estaca, com as mãos pregadas juntas, e os olhos no céu, e orando de contínuo. Depois o amarraram com correntes, e tendo colocado a lenha, um chamado Warwick lhe lançou cruelmente um feixe de lenha acima, que o bateu na cabeça e lhe cortou o rosto, de modo que manou sangue. Então o doutor Taylor lhe disse: "Amigo, já tenho suficiente dano, para que isto?" Sir John Shelton estava perto enquanto o doutor Taylor falava, e ao dizer o Salmo Miserere em inglês, lhe bateu nos lábios: "Velhaco", lhe disse, "fala em latim: te obrigarei". Afinal acenderam o fogo, e o doutor Taylor, alçando ambas mãos e clamando a Deus, disse: "Misericordioso Pai do céu! Por causa de Jesus Cristo, meu Salvador, recebe minha alma em tuas mãos!". Assim permaneceu então sem gritar nem mexer-se, com as mãos juntas, até que Soyce o feriu na cabeça com uma lança até derramar-se-lhe os miolos, e o cadáver caiu dentro do fogo. Assim entregou este homem de Deus sua bendita alma em mãos de seu misericordioso Pai, e a seu armadíssimo Salvador Jesus Cristo, a quem amou tão completamente, e tinha predicado tão fiel e fervorosamente seguindo-o com obediência em sua vida, e glorificando-o constantemente em sua morte. O martírio de William Hunter William Hunter tinha sido instruído nas doutrinas da Reforma desde sua mais tenra infância, descendendo de pais religiosos que o instruíram com solicitude nos princípios da verdadeira religião. Hunter, que tinha então dezenove anos, recusou receber a comunhão na missa, e foi ameaçado com ser levado diante do bispo, ante quem este valoroso jovem mártir foi conduzido por um policia. Bonner fez levar a William a uma sala, e ali começou a arrazoar com ele, prometendo-lhe seguridade e perdão se se desdizia. Inclusive se teria contentando com que somente recebesse a comunhão e a confissão, porém William não estava disposto a isso nem por nada do mundo. Portanto, o bispo ordenou a seus homens que colocassem a William no cepo em sua casa, na porta, onde ficou dois dias e duas noites, com somente a casca de um pão negro e um copo de água, que ele nem tocou. Ao finalizar estes dois dias, o bispo foi até ele e, achando-o firme em sua fé, o enviou à prisão dos convictos, ordenando ao carcereiro que o carregasse com tantas correntes como pudesse levar. Ficou em prisão por nove meses, durante os quais compareceu cinco vezes ante o bispo, além de uma ocasião na que foi condenado no consistório de são Paulo, o 9 de fevereiro, ocasião na que esteve presente seu irmão Robert Hunter. Então o bispo chamou a William, e lhe perguntou se estava disposto a retratar-se, e ao ver que permanecia inabalável, pronunciou sentença contra ele de que devia ir desde aquele lugar a Newgate por um tempo, e depois a Brentwood, para ser ali queimado. Após um mês, William foi enviado a Brentwood, onde seria executado. Ao chegar à estaca, se ajoelhou e leu o Salmo 51, até que chegou a estas palavras: "Os sacrifícios de Deus são o espírito quebrantado: ao coração contrito e humilhado não desprezarás Tu, oh, Deus". Firme em recusar o perdão da rainha se apostatava, finalmente um xerife chamado Richard Ponde acudiu e o amarrou com uma corrente em sua volta. William lançou agora seu saltério em mãos de seu irmão, quem lhe disse: "William medita na santa paixão de Cristo, e não temas a morte". "Eis aqui", respondeu William, "não tenho medo". Depois alçou suas mãos ao céu, e disse: "Senhor, Senhor, Senhor, recebe meu espírito!", e inclinando a cabeça para a asfixiante fumaça, entregou sua vida, selando-a com seu sangue para louvor de Deus. O doutor Robert Farrar Este digno e erudito prelado, bispo de St. David's em Gales, tinha-se mostrado muito zeloso no anterior reino, como também desde a ascensão de Maria, em impulsionas as doutrinas reformadas e em denunciar os erros da idolatria papista, e foi chamado, entre outros, para comparecer ante o perseguidor bispo de Winchester e outros comissionados designados para esta abominável obra de devastação e matança. Seus principais acusadores e perseguidores, sobre uma acusação de traição à coroa durante o reinado de Eduardo VI, foram seu criado George Constantine Walter, Tomás Youg, dignitário da catedral e depois bispo de Bangor, etc. O doutor Farrar respondeu idoneamente às cópias da denuncia que lhe deram, consistente em cinqüenta e seis artigos. Todo o processo judicial foi longo e tedioso. Houve retraso após retraso, e depois que o doutor Farrar tivesse sido injustamente detido em custódia, sob o reinado do rei Eduardo, porque tinha sido ascendido pelo duque de Somerset, pelo que depois de sua queda encontrou menos amigos para apoiá-lo contra os que queriam seu bispado ao chegar a rainha Maria, foi acusado e interrogado não por questão alguma de traição, senão por sua fé e doutrina; por este motivo foi feito comparecer ante o bispo de Winchester com o bispo Hooper, e os senhores Rogers, Bradford, Saunders e outros, o 4 de fevereiro de 1555; aquele mesmo dia também fora condenado com eles, mas sua condena foi aprazada, e foi enviado de novo à prisão, onde continuou até o 14 de fevereiro, sendo depois enviado a Gales a receber a sentença. Foi seis vezes obrigado a comparecer diante de Henry Morgan, bispo de St. David's, quem lhe pediu que abjurasse; isto o rejeitou cheio de zelo, apelando ao cardeal Pole; apesar disto o bispo, cheio de ira, o declarou herege isolado, e o entregou ao braço secular. O doutor Farrar, condenado e degradado, foi não muito tempo depois levado ao lugar de execução na cidade de Carmathen, em cujo mercado, ao sul da cruz do mercado, sofreu com grande inteireza os tormentos do fogo o 30 de março de 1555, que era o sábado antes do Domingo da Paixão. Acerca de sua constância, se diz que um tal Richard Jones, filho de um cavalheiro do rei, se aproximou do doutor Farrar pouco antes de sua morte, parecendo lamentar a dor da morte que iria sofrer; o bispo lhe respondeu que se o visse uma vez agitar-se nas dores de seu suplicio, poderia então não dar crédito a sua doutrina; e o que disse o manteve, permanecendo imperturbável, até que um tal Richard Graveil o abateu com um cacetete. O martírio de Rawlins White Rawlins White era pescador de vocação e ocupação, e viveu e se manteve desta profissão por espaço de vinte anos pelo menos, na cidade de Cardiff, onde tinha boa reputação entre seus vizinhos. Embora este bom homem carecia de instrução, e era além disso muito simples, aprouve a Deus tirá-lo do erro da idolatria e levá-lo ao conhecimento da verdade, por meio da bendita Reforma no reinado de Eduardo. Fez que ensinassem a seu filho a ler em inglês, e depois que o pequeno pôde ler bastante bem, seu pai o fazia ler a cada dia uma porção das Sagradas Escrituras, e de vez em quando alguma parte de um bom livro. Após ter-se mantido nesta confissão por cinco anos, morreu o rei Eduardo, e a sua morte ascendeu a Rainha Maria, e com ela se introduziram toda classe de superstições. White foi apreendido pelos oficiais da cidade como suspeito de heresia, levado ante o bispo Llandaff e encarcerado em Chepstow, e no final levado ao castelo de Cardiff, onde esteve por espaço de um ano inteiro. Conduzido ante o bispo em sua capela, lhe aconselhou que abjurasse, combinando promessas e ameaças. Mas como Rawlins não estava disposto a retratar-se de suas crenças, o bispo lhe disse diretamente que deveria proceder contra ele pela lei, e condená-lo como herege. Antes de passar a este extremo, o bispo propus que se realizasse uma oração por sua conversão. "Esta é", disse White, "uma atuação digna de um bispo digno, e se vossa petição é piedosa e reta, e orais como deveis, sem dúvida Deus vai ouvir você; orai, pois, ao vosso Deus, e eu orarei ao meu Deus". Quando o bispo e seu grupo terminaram suas orações, perguntou agora a Rawlins se estava disposto a abjurar. "Vereis", disse ele, "que vossa oração não tem sido concedida, porque eu permaneci igual que antes; e Deus me fortalecerá em apoio de sua verdade". Depois o bispo provou como iria dizendo missa, mas Rawlins chamou a todos como testemunhas de que ele não se inclinava ante a hóstia. Terminada a missa, Rawlins foi chamado de novo, e o bispo utilizou muitas persuasões, mas o bem-aventurado homem se manteve tão firme em sua anterior confissão que de nada serviram os arrazoamentos do bispo. Então este fez que se lesse sua sentença definitiva, e ao acabar a leitura Rawlins foi levado de novo a Cardiff, a um abominável cárcere da cidade chamado Cockmarel, onde passou o tempo em oração e cantando salmos. Após umas três semanas chegou que ordem desde a cidade para que fosse executado. Quando chegou ao lugar, onde sua coitada mulher e filhos estavam em pé chorando, a súbita contemplação deles traspassou de tal modo seu coração que as lágrimas banharam seu rosto. Chegando até o altar de seu sacrifício, indo até a estaca se ajoelhou, e beijou a terra; levantando-se de novo restou algo de terra grudada em sua face, e disse estas palavras: "Terra à terra, e pó ao pó; tu és minha mãe, e ti voltarei". Quando todas as coisas estiveram dispostas levantaram uma plataforma frente a Rawlins White, diretamente diante da estaca, na qual subiu um sacerdote, que se dirigiu ao povo; porém, enquanto falava da doutrina romanista dos Sacramentos, Rawlins gritou: "Ah, hipócrita branqueado! Tu presumes de demonstrar tua falsa doutrina pela Escritura? olha o que diz o texto que segue: Acaso não disse Cristo 'Fazei isto em memória de mim'?" Então alguns dos que estavam perto dele gritaram: "Acendei o fogo, acendei o fogo!". Feito isto, a palha e as canas deram uma grande e subida labareda. Nesta chama este bom homem banhou durante longo tempo sua mão, até que os tendões se encolheram e a gordura se desfez, exceto por um momento em que fez como se enxugasse o rosto com uma delas. Todo este tempo, que se prolongou bastante, clamou com forte voz: "Oh, Senhor, recebe meu espírito!", até que já não pôde mais abrir a boca. Finalmente, a violência do fogo foi tal contra suas pernas que ficaram consumidas quase antes que o resto do corpo fosse danificado, o que fez com que o corpo caísse sobre as correntes até o fogo antes do que teria sido normal. Assim morreu este bom homem por seu testemunho da vida de Deus, e agora está indubitavelmente recompensado com a coroa da vida eterna. O reverendo George Marsh George March nasceu na paróquia de Deane, no condado de Lancaster, recebendo uma boa educação e ofício de seus pais; aos vinte e cinco anos casou e viveu numa granja, com a bênção de vários filhos, até que sua mulher morreu. Depois foi a estudar a Cambridge, e veio ser capelão do reverendo Lawrence Saunders, e neste posto expus de maneira constante e cheia de zelo a verdade da Palavra de Deus e as falsas doutrinas do moderno Anticristo. Encerrado pelo doutor Coles, bispo de Chester, sob arresto domiciliário, ficou impedido da relação com seus amigos durante quatro meses. Seus amigos e sua mãe lhe rogavam insistentemente que fugisse "da ira vindoura"; porém o senhor March pensava que um passo assim não seria coerente com a profissão de fé que tinha mantido abertamente durante nove anos. Contudo, no final fugiu ocultando-se, mas teve muitas lutas, e em oração secreta rogou que Deus o conduzisse, por meio do conselho de seus melhores amigos, para Sua própria glória e para fazer o que melhor fosse. No final, decidido por uma carta que recebera a confessar abertamente a fé em Cristo, se despediu de sua sogra e outros amigos, encomendando seus filhos aos cuidados deles, e se dirigiu a Smethehills, desde onde foi levado, junto com outros, a Latburn, para sofrer um interrogatório ante o conde de Derby, Sir William Nores, o senhor Sherbum, o pároco de Grapnal e outros. Respondeu com boa consciência as várias perguntas que lhe fizeram, mas quando o se Shepburn o interrogou acerca de sua crença no Sacramento do altar, o senhor March respondeu como um verdadeiro protestante que a essência do pão e do vinho não mudava em absoluto; assim, depois de receber terríveis ameaças de parte de uns e boas palavras de parte de outros pelas suas opiniões, foi levado sob custódia, dormindo duas noites sem cama alguma. O Domingo de Ramos sofreu um segundo interrogatório, e o senhor March lamentou muito que seu temor o tivesse induzido a prevaricar e a buscar sua segurança enquanto não negasse abertamente a Cristo; e outra vez clamou com mais fervor a Deus pedindo-lhe forças para não ser abrumado pelas sutilezas daqueles que tratavam de derrubar a pureza de sua fé. Sofreu três interrogatórios diante do doutor Coles, quem, achando-o firme na fé protestante, começou a ler sua sentença; porém foi interrompido pelo chanceler, quem rogou ao bispo que se detivesse antes que fosse demasiado tarde. O sacerdote orou então pelo senhor March, mas este, ao ser-lhe pedido outra vez que voltasse atrás, disse que não ousava negar a seu Salvador Cristo, para não perder Sua misericórdia eterna e sofrer assim a morte sempiterna. Então o bispo passou a ler a sentença. Foi enviado a uma tenebrosa masmorra, e se viu privado de toda consolação (porque todos temiam aliviá-lo ou comunicar-se com ele) até o dia marcado no qual devia sofrer. Os xerifes da cidade, Amry e Couper, com seus oficiais, acudiram à porta norte, e levaram o senhor George March, quem andou todo o caminho com o Livro em sua mão, olhando para o mesmo, pelo que a gente dizia: "Este homem não vai a sua morte como ladrão, nem como alguém que mereça morrer". Quando chegou no lugar da execução, fora da cidade, perto de Spittal­ Boughton, o senhor Cawdry, assistente deputado de Chester, mostrou ao senhor March um escrito sob um grande selo, dizendo-lhe que era um indulto para ele se voltasse atrás. Ele respondeu que o aceitaria gostoso se não era sua intenção afastá-lo de Deus. Depois disto começou a falar às pessoas, mostrando qual era a causa de sua morte, e teria desejado exortá-los a aderirem a Cristo, mas um dos xerifes o impediu. Ajoelhando-se então, disse suas orações, tirou as roupas até ficar em camisa, e foi acorrentado ao poste, tendo vários feixes de lenha embaixo dele, e algo feito a modo de pipa, com breu e alcatrão para lançar sobre sua cabeça. Ao ter sido mal preparada a fogueira, e assoprando o vento em círculos, sofreu atrozmente, mas o suportou com inteireza cristã. Depois de ter permanecido longo tempo atormentado no fogo sem mexer-se, com sua carne tão assada e inchada que os que estavam perto dele não conseguir ver a corrente com que tinha sido amarrado, achando por isso que estava morto, de repente estendeu os braços, dizendo: "Pai celestial, tem misericórdia de mim!", e assim entregou seu espírito em mãos do Senhor. Com isto, muitos dentre o público diziam que era um mártir e que tinha morrido com uma gloriosa paciência. Isto levou pouco tempo depois ao bispo a dar um sermão na catedral, no qual afirmava que o tal "March era um herege, queimado como tal, e é uma brasa no inferno". O senhor March sofreu o 24 de abril de 1555. William Flower William Flower, também conhecido como Branco, nasceu em Show-hill, no condado de Cambridge, onde foi à escola durante alguns anos, e depois foi à abadia de Ely. Depois de ter permanecido ali durante um tempo, professou como monge, foi feito sacerdote na mesma casa, e ali celebrou e cantou a missa. Depois disso, por ação de uma visitação, e por certas ordens emanadas da autoridade de Henrique VIII, adotou o hábito de um sacerdote secular, e voltou a Snow-hill, onde tinha nascido, e ensinou a crianças durante meio ano. Depois foi a Ludgate, em Suffolk, onde serviu como sacerdote secular durante uns três meses; dali se dirigiu a Stoniland, depois a Tewksbury, onde casou, continuando sempre de modo fiel e honesta com aquela mulher. Do de casar-se permaneceu em Tewksbury uns dois anos, e dali foi a Brosley, onde praticou a medicina e a cirurgia; mas afastando-se daqueles lugares foi a Londres, e finalmente se instalou em Lambeth, onde ele e sua mulher conviveram. Contudo, estava geralmente fora, exceto uma ou duas vezes por mês para visitar e ver a sua mulher. Estando em sua casa um domingo de Páscoa pela manhã, passou o rio desde Lambeth à Igreja de St. Margaret em Westminster; ao ver ali um sacerdote chamado John Celtham que ministrava e dava o Sacramento do altar ao povo, e sentindo-se gravemente ofendido em sua consciência contra o sacerdote por aquilo, bateu nele e o feriu na cabeça, e também no braço e na mão, com uma faca para madeira, tendo naquele momento o sacerdote o cálice com a hóstia consagrada nele, que ficou borrifada de sangue. Por seu abobalhado zelo, o senhor Flower foi pesadamente acorrentado e colocado na casa da porta de Westminster, e depois feito comparecer ante o bispo Bonner, e seu ordinário; o bispo, após fazê-lo jurar sobre um Livro, o submeteu a acusações e interrogatório. Depois do interrogatório, o bispo começou a exortá-lo a voltar à unidade de sua mãe a Igreja católica, com muitas boas promessas. Mas ao rejeitá-las firmemente o senhor Flower, o bispo lhe ordenou que se apresentasse naquele mesmo lugar pela tarde, e que entretanto meditasse bem em sua anterior resposta; mas ao não escusar-se ele por ter batido no sacerdote nem vacilar em sua fé, o bispo o assinou o dia seguinte, 20 de abril, para receber a sentença se não se desdizia. Na manhã seguinte, o bispo passou então a lê-lhe a sentença, condenando-o e excomungando-o como herege, e depois de pronunciá-lo degradado, o entregou ao braço secular. 0 24 de abril, na véspera de são Marcos, foi levado ao lugar de seu martírio, no pátio da igreja de St. Margaret, em Westminster, onde tinha sido cometido o ato; chegando à estaca, orou ao Deus Onipotente, fez confissão de sua fé, e perdoou todo o mundo. Feito isto, sujeitaram sua mão contra a estaca, e foi cortada de um golpe, e lhe amarraram a mão esquerda atrás. Depois lhe pegaram fogo, e queimando-se nele, clamou com voz forte: "Oh, Tu, Filho de Deus, recebe minha alma!", três vezes. Ficando sem voz, deixou de falar, mas levantou seu braço mutilado com o outro todo o tempo que pôde. Assim suportou o tormento do fogo, sendo cruelmente torturado, porque tinham colocado poucos feixes, e sendo insuficientes para queimá-lo, precisaram abatê-lo tendendo-o no fogo, onde, deitado em terra, sua parte inferior foi consumida pelo fogo, enquanto sua parte superior ficava pouco danificada, e sua língua se mexeu em sua boca durante um tempo considerável. O reverendo John Cardmaker e John Warne O 30 de maio de 1555, o reverendo John Cardmaker, também chamado Taylor, prebendado da Igreja de Wells, e John Warne, tapeceiro, de St. John's, Walbrook, padeceram juntos em Smithfield. O senhor Cardmaker, que foi um frade observante antes da dissolução das abadias, foi depois um ministro casado, e no tempo do rei Eduardo foi designado leitor em são Paulo; apreendido a começos do reinado da Rainha Maria, junto com o doutor Barlow, bispo de Bath, foi levado a Londres e lançado no cárcere de Fleet, estando ainda em vigor as leis do rei Eduardo. No reinado de Maria, quando foi feito comparecer ante o bispo de Winchester, este lhe ofereceu a misericórdia da rainha se se desdizia. Tendo-se apresentado artigos de acusação contra o senhor John Warne, foi interrogado por Bonner, que o exortou ardentemente para que se retratasse de suas opiniões, porém este lhe respondeu: "Estou persuadido de que estou na reta opinião, e não vejo causa alguma para retratar-me; porque toda a imundícia e idolatria se encontram na Igreja de Roma". Então, o bispo, ao ver que não podia prevalecer com todas suas boas promessas e suas terríveis ameaças, pronunciou a sentença definitiva de condenação, e ordenou o 30 de maio de 1555 para a execução de John Cardmaker e John Warne, que foram levados pelos xerifes a Smithfield. Chegados à estaca, os xerifes chamaram aparte o senhor Cardmaker, e falaram com ele em segredo, enquanto o senhor Warnes orou, foi acorrentado à estaca, e colocaram lenha e canas em sua volta. Os espectadores estavam muito afligidos pensando que o senhor Cardmaker voltaria atrás ante a queima do senhor Warne. No final, o senhor Cardmaker se afastou dos xerifes, se dirigiu à estaca, ajoelhou-se e fez uma longa oração em silêncio. Depois se levantou, tirou as roupas até a camisa, e foi com valentia ao poste, beijando-o; e tomando da mão o senhor Warnes, o consolou cordialmente, e foi amarrado ao poste, regozijando-se. A gente, ao ver como isto acontecia tão rapidamente e em contra de suas anteriores expectativas, clamou: "Deus seja louvado! Deus te fortaleça, Cardmaker! Que o senhor Jesus receba teu espírito!". E isto prosseguiu enquanto o carrasco acendia o fogo e até que ambos passaram através dele a seu bendito repouso e paz entre os santos e mártires de Deus, para gozar da coroa do triunfo e da vitória preparada para os soldados e guerreiros escolhidos de Cristo Jesus em seu bendito Reino, a quem seja a glória e a majestade para sempre. Amém. John Simpson e John Ardeley Estes dois mártires foram condenados o mesmo dia que o senhor Cardmaker e John Warne, que era o 25 de maio. Foram pouco depois enviados desde Londres a Essex, onde foram queimados o mesmo dia, John Simpson em Rochford, e John Ardeley em Railey, glorificando a Deus em seu amado Filho, e regozijando-se de serem considerados dignos de padecer por Ele. Tomás Haukes, Tomás Watts e Anne Askew Tomás Haukes foi condenado, junto com outros seis, o 9 de fevereiro de 1555. Era erudito em sua educação, e galhardo de presença pessoal, e alto; em suas maneiras era um cavalheiro, e um cristão sincero. Pouco antes de sua morte, vários dos amigos do senhor Haukes, aterrorizados ante a dureza do castigo que devia sofrer, pediram-lhe em privado que em meio das chamas lhes mostrasse de alguma maneira se as dores do fogo eram demasiado grandes que não pudessem ser sofridas com compostura. Isto ele o prometeu, e se concordou que se a atrocidade da dor podia ser sofrida, que elevasse as mãos sobre sua cabeça até o céu, antes de expirar. Não muito depois, o Senhor Haukes foi conduzido ao lugar indicado para sua morte pelo lorde Rich, e chegando à estaca, se preparou mansa e pacientemente para o fogo; lhe colocaram uma pesada corrente na cintura, rodeando-o uma multidão de espectadores, e depois de ter-lhes falado largamente, e derramado sua alma a Deus, se acendeu o fogo. Quando houve permanecido muito tempo no fogo, e ficou sem já poder falar, com a pele encolhida e os dedos consumidos pelo fogo, de modo que se pensava e já havia morrido, subitamente e em contra de todas as expectativas, este bom homem, lembrando sua promessa, alçou suas mãos, que estavam queimadas nas chamas, e as levantou para o Deus vivo, e com grande regozijo, pelo que parece, as bateu ou palmeou três vezes seguidas. Seguiu um grande clamor ante esta maravilha circunstância, e depois este bendito mártir de Cristo, caindo sobre o fogo, entregou seu espírito, o 10 de junho de 1555. Tomás Watts, de Billericay, Essex, da diocese de Londres, era um tecelão de linho. Esperava a diário ser tomado pelos adversários de Deus, e isto lhe aconteceu o 5 de abril de 1555, quando foi levado diante do lorde Rich e os outros comissionados de Chelmsford, acusado de não acudir à igreja. Entregue ao sanguinário adversário, que o chamou para vários interrogatórios, e como era usual, muitos argumentos, com muitos rogos para que se tornasse discípulo do Anticristo, porém suas predicas de ns serviram, e recorreu então a sua última vingança, a da condenação. Na estaca, após tê-la beijado, falou ao lorde Rich, exortando-o a arrepender-se, porque o Senhor vingaria sua morte. Assim ofereceu este bom mártir seu corpo ao fogo, em defesa do verdadeiro Evangelho do Salvador. Tomás Osmond, William Bamford e Nicolas Chamberlain, todos da cidade de Coxhall, foram enviados a um interrogatório, e Bonner, após várias audiências, os declarou hereges obstinados, e os entregou aos xerifes, permanecendo em custódia deles até que fossem entregues ao xerife do condado de Essex, sendo executados por ele; Chamberlain em Colchester, o 14 de junho; Tomás Osmond em Maningtree, e William Bamford, apelidado Buller, em Harwich, o 15 de junho de 1555; todos eles morreram plenos da esperança gloriosa da imortalidade. Depois Wriotheseley, lorde chanceler, ofereceu a Anne Askew o perdão do rei se se desdizia; ela lhe deu esta resposta: que não tinha ido lá para negar a seu Senhor e Mestre. E assim a boa Anne Askew, rodeada de labaredas como bendito sacrifício para Deus, dormiu no Senhor em 1546, deixando trás de sim um singular exemplo de constância cristã para seguimento de todos os homens. Reverendo John Bradford e John Leaf, um aprendiz O reverendo John Bradford nasceu em Manchester, Lancashire; chegou a ser um grande erudito em latim, e depois veio a ser servo Deus Sir John Harrington, cavalheiro do rei. Continuou por vários anos de uma maneira honrada e proveitosa, mas o Senhor o havia escolhido para melhores funções. Portanto, se afastou de seu patrão, abandonando o Templo, em Londres, dirigindo-se à Universidade de Cambridge, para aprender, mediante a Lei de Deus, como impulsionar a edificação do templo do Senhor. Poucos anos depois, a universidade lhe concedeu o grau de mestre em artes, e foi escolhido companheiro de Pembroke Hall. Martinho Bucero o pressionou a que predicasse, e quando com modéstia pus em dúvida sua capacidade, Bucero replicou: "Se não tens um fino pão de farinha de trigo, dá então aos pobres pão de centeio, ou o que o Senhor te tenha encomendado". O doutor Ridley, aquele digno bispo de Londres e glorioso mártir de Cristo, o chamou primeiro para dá-lhe o grau de diácono e uma prebenda em sua igreja catedral de são Paulo. Neste ofício de predicação, o senhor Bradford se dedicou a uma diligente atividade por espaço de três anos. Repreendeu severamente o pecado, predicou docemente a Cristo crucificado, refutou com grande capacidade os erros e as heresias, persuadindo fervorosamente a viver piedosamente. Depois da morte do bem-aventurado rei Eduardo VI, o senhor Bradford continuou predicando diligentemente, até que foi suprimido pela Rainha Maria. Seguiu agora uma ação da mais negra ingratidão, ante a qual coraria até um pagão. Tem-se falado que o senhor Bourne (então bispo de Bath) suscitou um tumulto predicando em St. Paul's Cross; a indignação da gente pôs sua vida em iminente perigo; inclusive lhe lançaram uma adaga. Nesta situação, rogou ao senhor Bradford, que estava detrás dele, para que falasse em seu lugar e acalmasse os ânimos. A gente acolheu bem o senhor Bradford, e este se manteve desde então perto de Bourne, para com sua presença impedir que a plebe renovasse seus ataques. O mesmo domingo, pela tarde, o senhor Bradford predicava na igreja de Bow em Cheapside, e reprovou duramente o povo por sua conduta sediciosa. Apesar de sua ação, após três dias foi enviado à Torre de Londres, onde estava então a rainha, para comparecer ante o Conselho. Ali foi acusado por este ato de salvar o senhor Bourne, que foi considerado como sedicioso, e também objetaram contra ele por sua predicação. Foi então enviado primeiro à Torre, depois a outras prisões, e, depois de sua condena, a Poultry Compter, onde predicou duas vezes ao dia de maneira contínua, até que foi impedido por uma doença. Tal era seu crédito para com o guarda do cárcere real que lhe permitiu uma noite visitar a uma pessoa pobre e doente perto do deposito de aço, sob a promessa de voltar a tempo; e nisto não falhou. A noite antes de ser enviado a Newgate, viu-se turbado em seu descanso por sonos pressagiadores, no sentido de que na seguinte segunda-feira seria queimado em Smithfield. Pela tarde, a mulher do guarda foi vê-lo, e lhe anunciou a terrível notícia, mas nele somente suscitou agradecimento a Deus. pela noite foram a visitá-lo meia dúzia de amigos, com os que passou toda a véspera em oração e piedosas atividades. Quando foi levado a Newgate, o acompanhou uma multidão que chorava, e tendo-se estendido o rumor de que iria sofrer o suplício às quatro do dia seguinte, apareceu uma imensa multidão. Às 9 da manhã o senhor Bradford foi levado a Smithfield. A crueldade do xerife merece ser destacada; porque o cunhado do senhor Bradford, Roger Beswick, lhe deu a mão ao passar, e Woodroffe, o xerife, lhe abriu a cabeça com seu cacetete. Tendo chegado o senhor Bradford ao lugar, caiu prostrado no chão. Depois, tirando-se a roupa até ficar em camisa, foi até a estaca, e ali padeceu junto a um jovem de vinte anos de idade, chamado John Leaf, um aprendiz do senhor Humphrey Gaudy, um fabricante de velas de Christ Church, em Londres. Tinha sido apresado na sexta-feira antes do Domingo de Ramos, e encerrado no Compter em Bread Street, e depois interrogado e condenado pelo sanguinário bispo. Se informa acerca dele que quando se leu sua ata de confissão, em lugar de uma pluma, tomou uma agulha e, furando-se um dedo, borrifou com seu sangue sobre a mencionada ata, dizendo ao leitor da mesma que mostrasse ao bispo que já tinha selado o documento com seu sangue. Ambos terminaram suas vidas mortais o 12 de julho de 1555 como dois cordeiros, sem alteração alguma em seus rostos, esperando obter aquele prêmio pelo que tinham corrido tanto. Queira conduzir-nos ao mesmo o Deus Onipotente, pelos méritos de Cristo nosso Senhor! Concluiremos este artigo mencionando que o senhor xerife Woodroffe caiu seis meses depois paralítico do lado direito, e que por espaço de oito anos (até o dia de sua morte) não pôde voltar-se na cama por si mesmo; assim chegou a ser, afinal, um espetáculo terrível. O dia depois que o senhor Bradford e John Leaf sofreram em Smithfield, William Minge, um sacerdote, morreu no cárcere de Maidstone. Com uma constância e valor iguais de grandes que se tivesse aprazido a Deus chamá-lo a sofrer no fogo (como muitos outros bons homens tinham sofrido antes na estaca, e como ele mesmo estava disposto a sofrer, se Deus tivesse querido chamá-lo a esta prova), entregou sua vida no cárcere. O reverendo John Bland, o reverendo John Frankesh, Nicolas Shetterden Humphrey Middleton Estes cristãos foram todos queimados em Canterbury pela mesma causa. Frankesh e Bland eram ministros e predicadores da Palavra de Deus, sendo um pároco de Adesham, e o outro vigário de Rolvenden. O senhor Bland foi citado a responder por sua oposição ao anti-cristianismo, e sofreu vários interrogatórios ente o doutor Harpsfield, prelado de Canterbury, e finalmente foi condenado o 25 de junho de 1555, por opor-se ao poder do Papa, e entregue ao braço secular. O mesmo dia foram condenados John Frankesh, Nicolas Shetterden, Humphrey Middleton, Thacker e Crocker, dos quais somente Thacker voltou atrás. Entregue ao braço secular, o senhor Bland e os três anteriores foram queimados em Canterbury o 12 de julho de 1555, em duas distintas estacas mas num mesmo fogo, onde eles, à vista de Deus e de seus anjos, e diante dos homens, deram, como verdadeiro soldados de Jesus Cristo, um testemunho firme da verdade de seu santo Evangelho. John Lomas, Agnes Snoth, Anne Wright, Joan Sole e Joan Catmer Estes cinco mártires sofreram juntos o 31 de janeiro de 1556. John Limas era um jovem de Tenteren. Foi citado a comparecer em Canterbury, e interrogado o 17 de janeiro. Ao serem suas respostas adversas à idolatria papista, foi condenado no dia seguinte, e sofreu o 31 de janeiro. Agnes Snoth, viúva, da paróquia de Smarden, foi feita comparecer várias vezes diante dos farisaicos católicos, e ao rejeitar a absolvição, as indulgências, a transubstanciação e a confissão auricular, foi considerada digna de morte, e suportou o martírio o 31 de janeiro, com Anne Wright e Joan Sole, que se encontravam nas mesmas circunstâncias e que morreram ao mesmo tempo e com idêntica resignação. Joan Catmer, a última desta celestial companhia, da paróquia de Hithe, era esposa do mártir George Catmer. Poucas vezes tem-se dado mas país algum que por controvérsias políticas quatro mulheres tenham sido levadas a execução, ainda quando suas vidas foram irrepreensíveis, vidas as quais a compaixão dos sacrilégios teria perdoado. Não podemos deixar de observar aqui que quando o poder protestante alcançou no princípio o domínio sobre a superstição católica, q foi necessário algum grau de força nas leis para impor uniformidade, pelas que algumas poucas pessoas tenazes sofreram privações de suas pessoas e bens, lemos de poucas fogueiras, crueldades selvagens ou de coitadas mulheres levadas à estaca; mas está na natureza do erro recorrer à força em lugar de a argumentação, e silenciar a verdade arrebatando a vida, e o caso do próprio Redentor é um exemplo disso. As anteriores cinco pessoas foram queimadas em duas estacas numa mesma fogueira, cantando hosana ao glorificado Salvador, até que foi extinguido o alento de vida. Sir John Norton, que estava presente, chorou amargamente ante seus desmerecidos sofrimentos. O arcebispo Cranmer O doutor Tomás Cranmer descendia de uma antiga família, e nasceu no povo de Arselacton, no condado de Northampton. Depois da usual educação escolar, foi enviado a Cambridge, e escolhido companheiro do Jesus College. Ali casou com a filha de um cavalheiro, pelo que perdeu sua condição de companheiro, e passou a ser leitor em Buckingham College, instalando a sua mulher em Dolphin Inn, sendo a patroa uma parenta dela, de onde se suscitou o falso rumor de que ele era um moço de cavalariça. Ao morrer sua mulher pouco depois, de parto, foi escolhido, para seu crédito, de novo como companheiro do colégio antes mencionado. Poucos anos depois foi elevado a professor de Teologia, e designado como um dos examinadores daqueles que estavam já prontos para ser Bachareles ou Doutores em Divindade. Era princípio seu julgar as qualificações com base mais no conhecimento que possuíam das Escrituras, que no que conheciam dos antigos padres, e por isto muitos sacerdotes papistas foram rejeitados, e outros obtiveram grandes vantagens. Foi intensamente solicitado pelo doutor Capon para que fosse um dos companheiros na fundação do colégio do cardeal Wolsey, em Oxford, cargo que aventurou recusar. Enquanto continuou em Cambridge, se suscitou a questão do divórcio de Henrique VIII com Catarina. Naquele tempo, por causa da peste, o doutor Cranmer foi morar à casa de um tal senhor Cressy, em Waltham Abbey, cujos dois filhos foram então educados sob sua supervisão. A questão do divórcio, em contra da aprovação do rei, tinha ficado indecisa por mais de dois ou três anos, devido às intrigas dos canônigos e civis, e embora os cardeais Campeius e Wolsey foram comissionados por Roma para decidir acerca desta questão, retardaram a sentença a propósito. Aconteceu que o doutor Gardiner (secretário) e o doutor Fox, defensores do rei neste pleito, foram à casa do senhor Cressy para alojar-se ali, enquanto o rei se alojava em Greenwich. Durante o jantar, se manteve uma conversação com o doutor Cranmer, que sugeriu que a questão de se um homem podia casar com a mulher de seu irmão ou não, podia resolver-se de forma rápida recorrendo à Palavra de Deus, e isto tanto nos tribunais ingleses como nos de qualquer nação estrangeira. O rei, inquieto ante esta demora, enviou a buscar o doutor Gardiner e o doutor Fox para consultá-los, lamentando ter que enviar outra comissão a Roma e que a questão continuasse assim dilatada sem fim. Ao contar ao rei da conversação mantida na noite anterior com o doutor Cranmer, sua majestade mandou buscá-lo, e lhe comunicou os escrúpulos de consciência acerca de seu próximo parentesco com a rainha. O doutor Cranmer aconselhou que a questão fosse remitida aos mais eruditos teólogos de Cambridge e Oxford, porquanto se sentia remisso a misturar-se com uma questão tão importante; porém o rei lhe ordenou que lhe desse seu parecer por escrito, e dirigir-se para isso ao conde de Wiltshire, que o proveria de livros e de tudo o necessário. O senhor Cranmer obedeceu de imediato, e em sua declaração citou não só a autoridade das Escrituras, dos Concílios gerais, e dos antigos escritores, senão que manteve que o bispo de Roma não tinha autoridade alguma para deixar de lado a Palavra de Deus. O rei lhe perguntou se manter-se-ia nesta atrevida declaração, e ao responder ele em sentido afirmativo, foi enviado como embaixador a Roma, junto com o duque de Wiltshire, o doutor Stokesley, o doutor Bennet e outros, antes do qual se tratou acerca daquele matrimônio na maior parte das universidades da cristandade e dentro do reino. Quando o Papa apresentou o polegar de seu pé para ser beijado, segundo era o costume, o conde de Wiltshire e sua companhia recusaram fazê-lo. inclusive se afirma que o cachorro spaniel do conde, atraído pelo brilho do polegar do Papa, o mordeu, com o qual sua Santidade retirou seu sagrado pé, dando um chute ao ofensor com o outro. Ao demandar o Papa a causa desta embaixada, o conde apresentou o livro do doutor Cranmer, declarando que seus eruditos amigos tinham vindo a defendê-lo. o Papa tratou honrosamente a embaixada e marcou um dia para a discussão, que depois retrasou, como temendo o resultado da pesquisa. O conde voltou, e o doutor Cranmer, por desejo do rei, visitou o imperador, e logrou atraí-lo a sua opinião. Ao voltar o doutor a Inglaterra e morrer o doutor Warham, arcebispo de Canterbury, o doutor Cranmer foi merecidamente elevado, por desejo do doutor Warham mesmo, àquela iminente posição. Nesta função pode dizer-se que cumpriu diligentemente o encargo de são Paulo. Diligente no cumprimento de seus deveres, acordava às cinco da manhã e prosseguia no estudo e oração até as nove; entre então e a comida se dedicava às questões temporais. Depois da comida, se alguém solicitava uma audiência, decidia suas questões com tal afabilidade que inclusive os que recebiam decisões contrárias não se sentiam totalmente frustrados. Depois jogava xadrez por uma hora, ou contemplava como outros jogavam, a às cinco ouvia a Oração Comum, e desde então até o jantar se recreava passeando. Durante seu jantar sua conversação era vivaz e entretida; de novo passeava ou se entretinha até as nove, e depois se dirigia a seu escritório. Teve a mais alta estima e favor do rei Henrique, e sempre teve dentro de seu coração a pureza e os interesses da Igreja de Inglaterra. Seu temperamento manso e perdoador se registra com o seguinte exemplo: um sacerdote ignorante, no campo, tinha chamado a Cranmer de moço de cavalariça, e se havia referido de forma muito depreciativa à sua cultura. Ao sabê-lo lorde Cromwell, aquele homem foi enviado ao cárcere do fleet, e seu caso foi apresentado diante do arcebispo por um tal senhor Chertsey, um mercador, parente do sacerdote. Sua graça, fazendo chamar o ofensor, arrazoou com ele e pediu ao sacerdote que lhe perguntasse sobre qualquer assunto de erudição. A isto se negou o homem, vencido pela cordialidade do arcebispo e sabendo de sua própria e patente incapacidade, e lhe pediu perdão, que lhe foi concedido de imediato, com a ordem de que empregasse melhor seu tempo quando voltasse a sua paróquia. Cromwell sentiu-se muito ofendido pela indulgência mostrada, mas o bispo estava mais disposto a receber insultos que a vingar-se de qualquer outra maneira que com bons conselhos e bons ofícios. Para o tempo em que Cranmer foi ascendido a arcebispo, era capelão do rei e arquidiácono de Taunton; foi também constituído pelo Papa penitenciário geral da Inglaterra. O rei considerou que Cranmer seria obsequioso, e por isso este casou o rei com Ana Bolena, celebrou a coroação dela, foi padrinho de Elizabete, o primeiro fruto do matrimônio, e divorciou o rei de Catarina. Embora Cranmer fosse confirmado em sua dignidade pelo Papa, sempre protestou contra reconhecer qualquer outra autoridade que a do rei, e persistiu nos mesmos sentimentos de independência quando foi feito comparecer ante os comissionados de Maria em 1555. Um dos primeiros passos após o divórcio foi impedir a predicação em toda sua diocese, mas esta estreita medida tinha uma finalidade mais política que religiosa, porquanto havia muitos que denegriam a conduta do rei. Em sua nova dignidade, Cranmer suscitou a questão da supremacia, e com seus argumentos poderosos e justos induziu o parlamento a "dar ao César o que é do César". Durante a residência de Cranmer na Alemanha em 1531 conheceu a Osiandro em Nuremberg, e casou com sua sobrinha, mas a deixou com ele ao voltar a Inglaterra. Depois de um tempo a fez vir privadamente, e ficou com ele até o ano 1539, quando os Seis Artigos o obrigaram a devolvê-la a seus amigos por um tempo. Deveríamos lembrar que Osiandro, tendo logrado a aprovação de seu amigo Cranmer, publicou a laboriosa obra da Harmonia dos Evangelhos em 1537. Em 1534, o arcebispo alcançou o mais querido objetivo de seu coração, a eliminação de todos os obstáculos para a consumação da Reforma, mediante a subscrição por parte dos nobres e dos bispos à única supremacia do rei. Somente se opuseram o bispo Fisher e Sir Tomás More. Cranmer estava disposto a considerar suficiente o acordo deles a não opor-se à sucessão, mas o monarca queria uma concessão total. Não muito tempo depois, Gardiner, numa conversação privada com o rei, falou mal de Cranmer (a quem odiava malignamente), por ter aceitado o título de primado de toda a Inglaterra, como depreciativo da supremacia do rei. Isto suscitou fortes ciúmes contra Cranmer, e sua tradução da Bíblia foi fortemente oposta por Stokesley, bispo de Londres. Se diz que ao ser despedida a Rainha Catarina, sua sucessora Ana Bolena se gozou. Isto é uma lição de quão superficial é o juízo humano, porquanto a execução desta última teve lugar na primavera do ano seguinte, e o rei, no dia seguinte da decapitação desta dama sacrificada, casou com a bela Jane Seymour, dama de honra da defunta rainha. Cranmer foi sempre amigo de Ana Bolena, mas era perigoso opor-se à vontade daquele tirânico e carnal monarca. Em 1538 se expuseram publicamente as Sagradas Escrituras para a venda, e os lugares de culto se enchiam de multidões para escutar a exposição de suas santas doutrinas. Ao passar o rei como lei os famosos Seis Artigos, que voltavam de novo quase a estabelecer os artigos essenciais do credo romanista, Cranmer resplandeceu com todo o brilho de um patriota cristão, resistindo as doutrinas contidas neles, no que foi apoiado pelos bispos de Sarum, Woreester, Ely e Rochester, demitindo os dois primeiros de seus bispados. O rei, embora agora oposto a Cranmer, continuava reverenciando a sinceridade que marcava sua conduta. A morte do bom amigo de Cranmer, lorde Cromwell, na Torre em 1540, foi um forte golpe para a vacilante causa protestante, porém inclusive agora, ainda vendo a maré contrária total à causa de verdade, Cranmer se apresentou pessoalmente ante o rei e conseguiu, com seus varonis e cordiais argumentos, que o Livro dos Artigos fosse deixado de lado, para confusão de seus inimigos, que tinham considerado sua queda como inevitável. Cranmer viveu agora de um modo tão escuro como lhe foi possível, até que o rancor de Winchester o levou à apresentação de umas denúncias contra ele,a respeito das perigosas opiniões ensinadas em sua família, junto com outras acusações de traição. Estas as apresentou o Pai rei a Cranmer, e acreditando firmemente na fidelidade e nos protestos de inocência do acusado prelado, fez investigar a fundo a questão, e se descobriu que Winchester o doutor Lenden, junto com Thompton e Barber, dois domésticos do bispo, resultaram, por papéis obtidos, ser os verdadeiros conspiradores. O gentil e perdoador Cranmer teria gostado de interceder por toda remissão de castigo se Henrique, comprazido com o subsídio votado pelo Parlamento, não os tivesse deixado livres. Mas estes nefastos homens voltaram iniciar suas tramas contra Cranmer, caindo vítimas do ressentimento do rei, e Gardiner perdeu para sempre sua confiança. Sir G. Gostwick apresentou pouco depois acusações contra o arcebispo, que Henrique esmagou, e que o primado esteve disposto a perdoar. Em 1544 foi queimado o palácio arzobispal de Canterbury, e seu cunhado e outros morreram no incêndio. Estas várias aflições podem servir-nos para reconciliar-nos com um humilde estado, porque, de que felicidade podia vangloriar-se este homem, porquanto sua vida estava sendo constantemente carregada, bem com cruzes políticas, religiosas ou naturais? Outra vez o implacável Gardiner apresentou graves acusações contra o manso arcebispo, e teria desejado mandá-lo à Torre; porém o rei era seu amigo, lhe deu seu selo para defender-se, e no Conselho não somente declarou que o bispo era um dos homens de melhor caráter de seu reino, senão que repreendeu azedamente os acusadores por sua calúnia. Tendo-se assinado a paz, Henrique e o rei francês Henrique o Grande mostraram unanimidade na abolição da missa em seus reinos, e Cranmer se lançou nesta grande tarefa; porém a morte do monarca inglês em 1546 levou à suspensão desta ação, e o rei Eduardo VI, seu sucessor, confirmou a Cranmer nas mesmas funções; em sua coroação lhe encomendou uma tarefa que sempre honrará sua memória, por sua pureza, liberdade e verdade. Durante este reinado continuou efetuando a gloriosa Reforma com um zelo incansável, até no ano 1552, quando se viu açoitado por umas severas febres, aflição da qual aprouve a Deus restaurá-lo, para que pudesse testemunhar com sua morte da verdade daquela semente que havia plantado tão diligentemente. A morte de Eduardo, em 1553, expus a Cranmer a toda a fúria de seus inimigos. Embora o arcebispo estava entre os que haviam apoiado a ascensão de Maria, foi arrestado ao reunir-se o parlamento, e em novembro foi declarado culpável de alta traição em Guildhall, e degradado de suas dignidades. Enviou uma humilde carta a Maria, explicando a causa de sua assinatura do testamento em favor de Eduardo, e em 1554 escreveu ao Conselho, a quem pressionou a pedir perdão à rainha, mediante uma carta entregada ao doutor Weston, mas este a abriu e, ao ler seu conteúdo, cometeu a baixeza de devolvê-la. A traição era uma acusação totalmente inaplicável contra Cranmer, quem havia apoiado o direito da rainha, enquanto outros, que haviam favorecido a lady Jane foram liberados mediante o pagamento de uma pequena multa. Agora se espalhou contra Cranmer uma calúnia de que havia acedido a certas cerimônias papistas para congraçar-se com a rainha, o que ousou negar em público, justificando seus artigos de fé. A ativa parte que o prelado tivera no divórcio da mãe de Maria sempre tinha ficado profundamente encravada no coração da rainha, e a vingança foi um rasgo destacado na morte de Cranmer. Nesta obra temos mencionado as disputas públicas em Oxford, nas que os talentos de Cranmer, Ridley e Latimer se mostraram de maneira tão patente, e que levaram à sua condena. A primeira sentença foi ilegal, porquanto o poder usurpado do Papa não tinha sido restabelecido de forma legal. Deixados no cárcere até que isto esteve em último lugar, se enviou uma comissão desde Roma, designando o doutor Brooks como representante de Sua Santidade, e os doutores Story e Martin como os da rainha. Cranmer estava disposto a submeter-se à autoridade dos doutores Story e Martin, mas objetou a do doutor Brooks. Tais foram as observações e contestações de Cranmer, após um longo interrogatório, que o doutor Brooks comentou: "Viemos interrogar-vos a vós, e para que sois vós que nos interroga". Enviado de novo a seu encerro, recebeu uma citação para comparecer em Roma após dezoito dias; mas isto lhe era impossível, porquanto estava encarcerado na Inglaterra, e como disse, ainda que tivesse estado livre, era demasiado pobre para pagar um advogado. Por absurdo que pareça, Cranmer foi condenado em Roma, e o 14 de fevereiro de 1556 se designou uma nova comissão pela qual foram estabelecidos Thirlby, bispo de Ely, e Bonner, de Londres, para agir em juízo em Christ Church, Oxford. Em virtude deste tribunal, Cranmer foi degradado gradualmente, colocando-lhe uns míseros farrapos para representar as vestes de um arcebispo. Tirando-lhe depois estas roupas, lhe arrancaram a própria toga, e lhe colocaram acima uma velha; isto o suportou imperturbável, e seus inimigos, ao ver que a severidade somente o deixava mais decidido, tentaram o caminho oposto, e o alojaram em casa do arquidiácono do Christ Church, onde foi tratado com todas as contemplações. Isto constituiu tal contraste com os três anos de duro encerro que havia sofrido que lhe fez baixar a guarda. Seu natural aberto e generoso era mais susceptível a ser seduzido por uma conduta liberal que por ameaças e correntes. Quando Satanás vê a um cristão a prova contra todo ataque, tento outro. E que forma há mais sedutora que os sorrisos, as recompensas e o poder, depois de um encarceramento longo e penoso? Assim aconteceu com Cranmer; seus inimigos lhe prometeram sua anterior grandeza se se desdizia, e também o favor da rainha, e isto quando já sabiam que sua morte tinha sido decidida no Conselho. Para suavizar o caminho para a apostasia, o primeiro documento que lhe apresentaram para assinar estava redigido em termos gerais; uma vez assinado, outros cinco lhe foram sucessivamente apresentados como explicativos do primeiro, até que no final assinou este detestável documento: "Eu, Tomás Cranmer, anterior arcebispo de Canterbury, renuncio, aborreço e detesto toda forma de heresias e erros de Lutero e Zuínglio, e todos os outros ensinos contrários com a sã e verdadeira doutrinária. E creio com toda constância em meu coração, e confesso com minha boca, uma igreja santa e católica visível, fora da qual não há salvação; e por isso reconheço o bispo de Roma como o supremo cabeça na terra, a quem reconheço como o mais elevado bispo e Papa, e vicário de Cristo, a quem deveriam sujeitar-se todas as pessoas cristãs". "No que respeita aos sacramentos, creio e adoro no sacramento do altar o corpo e o sangue de Cristo, contidos bem verdadeiramente sob as forma de pão e vinho; sendo o pão, pelo infinito poder de Deus, transformado no corpo de nosso Salvador Jesus Cristo, e o vinho em seu sangue". "E nos outros seis sacramentos também (como neste) creio e mantenho como o mantém a Igreja universal, e como o julga e determina a Igreja de Roma". "Creio também que há um lugar de purgação, onde as almas dos defuntos são desterradas por um tempo, pelas quais a Igreja ora piedosa e sadiamente, como também honra os santos e faz orações aos mesmos". "Finalmente, em todas as coisas professo que não creio de outra forma que o que mantém e ensina a Igreja Católica e a Igreja de Roma. Sinto ter jamais mantido ou pensado coisa diferente. E rogo ao Deus Onipotente que em sua misericórdia me outorgue o perdão por tudo o que tenho ofendido contra Deus ou sua Igreja, e também desejo e rogo a todos os cristãos que orem por mim". "E que todos os que têm sido enganados já por meu exemplo, já pela minha doutrina, lhes demando, pelo sangue de Jesus Cristo, que voltem à unidade da Igreja, para que todos sejamos de um pensar, sem cismas nem divisões". "E para concluir, tal como me submeto à Católica Igreja de Cristo, e a sua suprema cabeça, do mesmo modo me submeto a suas mais excelentes majestades Felipe e Maria, rei e rainha deste reino de Inglaterra, etc., e a todas suas outras leis e decretos, estando sempre como fiel súbdito presto a obedecê-lhes. E Deus é testemunha que tenho feito isto não pelo favor ou temor de ninguém, senão voluntariamente, e por minha própria consciência, em quando a instruções de outros". "O que pensa estar firme, olhe que não caia", disse o apóstolo, e esta foi certamente uma queda! Os papistas tinham agora triunfado de vez, obtendo dele tudo o que queriam aparte de sua vida. Sua retratação foi imediatamente impressa e dispersada, para que surtisse seu efeito sobre os atônitos protestantes. Mas Deus predominou sobre todos os desígnios dos católicos pela sanha com a que executaram implacáveis a perseguição de sua presa. É indubitável que o amor à vida foi o que induziu a Cranmer a assinar a anterior declaração; porém pode-se dizer que a morte teria sido preferível para ele que a vida, estando sob o aguilhão de uma consciência violada e do menosprezo de cada cristão evangélico; e esta ação a sentiu com toda sua força e angústia. A vingança da rainha somente podia ser satisfeita com o sangue de Cranmer, e portanto ela escreveu uma ordem ao doutor Pole para que preparasse um sermão que devia ser predicado o 21 de março, diretamente antes do martírio, em St. Mary's, Oxford. O doutor Pole o visitou uns dias antes, e o induziu a acreditar que proclamaria publicamente suas crenças como confirmação dos artigos que tinha assinado. Por volta das 9 da manhã do dia da imolação, os comissionados da rainha, acompanhados pelos magistrados, levaram o gentil e infortunado homem à Igreja de St. Mary's. Seu hábito esfarrapado e sujo, o mesmo com o qual o vestiram quando o degradaram, excitou a compaixão da gente. Na igreja encontrou uma pobre e mísera plataforma, levantada justo diante do púlpito, onde o deixaram, e ali voltou o rosto e orou fervorosamente a Deus. A igreja estava repleta de pessoas de ambas convicções, esperando ouvir uma justificação de sua recente apostasia; os católicos regozijando-se, e os protestantes profundamente feridos em seu espírito ante o engano do coração humano. O doutor Pole denunciou em seu sermão a Cranmer como culpável dos mais atrozes crimes; alentou o enganado sofredor a não temer a morte, nem a duvidar do apoio de Deus em seus tormentos, nem de que se diriam missas por ele em todas as igrejas de Oxford para o descanso de sua alma. Depois o doutor observou sua conversão, a qual atribuiu à evidente operação do poder do Onipotente, e a fim de que a gente se convencesse de sua realidade, pediu ao prisioneiro que lhes desse um sinal. E Cranmer o fez, rogando a congregação que orassem por ele, porque tinha cometido muitos e graves pecados; porém de todos eles havia um que gravitava pesadamente sobre ele, do qual falaria em breve. Durante o sermão, Cranmer chorou amargas lágrimas, levantando as mãos e o olhar ao céu e deixando-as cair, como se indigno de viver; sua dor encontrou agora seu alívio nas palavras; antes de sua confissão caiu de joelhos, e com as seguintes palavras desvelou a profunda convicção e agitação que moviam sua alma. "Oh, Pai do céu! Oh, Filho de Deus, Redentor do mundo! Oh, Espírito Santo, três pessoas num Deus! tem misericórdia de mim, o mais miserável dos covardes e pecadores. Pequei tanto contra o céu como contra a terra, mais do que minha língua possa expressar. Aonde posso ir, ou aonde posso fugir? Ao céu posso estar envergonhado de levantar meus olhos, e na terra não acho lugar onde refugiar-me nem quem me socorra. A ti, pois, corro, Senhor; ante ti me humilho, dizendo: oh, Senhor, meu Deus, meus pecados são grandes, mas tem misericórdia Tu de mim por tua grande misericórdia. O grande mistério de que Deus se fizesse homem não teve lugar por pequenas ou poucas ofensas. Tu não nos deste a teu Filho, ó Pai celestial, à morte somente por pequenos pecados, senão pelos maiores pecados do mundo, para que o pecador possa voltar a ti de todo coração, como eu o faço agora. Por isso, tem misericórdia de mim, oh, Deus, cuja qualidade é sempre ter misericórdia, tem misericórdia de mim, oh, Senhor, por tua grande misericórdia. Nada anelo por meus próprios méritos, senão por causa de teu nome, para que seja por isso santificado, e por causa de teu amado Filho, Jesus Cristo. E agora, pois, Pai nosso que estás no céu, santificado seja teu nome..." etc. Depois, levantando-se disse que desejava antes de sua morte fazer algumas piedosas observações pelas que Deus pudesse ser glorificado, e eles mesmos edificados. Depois falou acerca do perigo do amor pelo mundo, do dever da obediência a suas majestades, do amor de uns pelos outros, e da necessidade de que os ricos ministrassem para as necessidades dos pobres. Citou os três versículos do quinto capítulo de Tiago, e então prosseguiu: "Que os ricos ponderem bem estas três sentenças: porque se jamais tiveram ocasião de mostrar sua caridade, a têm agora neste tempo presente, havendo tantos pobres, e sendo tão caros os alimentos". "E agora, porquanto tem chegado o fim de minha vida, no qual pende toda minha vida passada e a minha vida vindoura, bem para viver com meu Senhor Cristo para sempre com gozo, ou bem para estar em penas sempiternas com os malvados no inferno, e enxergo agora com meus olhos, neste momento, o céu pronto para receber-me, ou o inferno prestes a engolir-me; por isso vos exporei minha própria fé que acredito, sem cores nem engano algum, porque não é agora o momento de enganar, seja o que for que tenha escrito em tempos passados". "Primeiro, creio em Deus o Pai Onipotente, Criador dos céus e da terra, etc. e creio cada um dos artigos da fé católica, cada palavra e frase ensinada por nosso Salvador Jesus Cristo, seus apóstolos e profetas, no Novo e Antigo Testamento". "E agora chego ao que tanto perturba minha consciência, mais que nada do que tenha feito ou falado em toda minha vida, e é a difusão de um escrito contrário à verdade que aqui agora renuncio e recuso como coisas escritas por minha mão em contra da verdade que pensava em meu coração, e escritas por temor à morte, e para salvar minha vida se isso for possível; e se trata de todos aqueles documentos e papéis escritos ou assinados por minha mão desde minha degradação nos que tenho escrito muitas coisas falsas. E porquanto minha mão tem ofendido, escrevendo em contra de meu coração, por isso minha mão será a primeira em ser castigada; porque quando chegue ao fogo será o primeiro em ser queimado". "Em quanto ao Papa, o rejeito como inimigo de Cristo e Anticristo, com todas suas falsas doutrinas". Ao concluir esta inesperada declaração, se respirava assombro e indignação em todos os cantos da igreja. Os católicos estavam totalmente confundidos, frustrados totalmente em seu intento, tendo Cranmer, a semelhança de Sansão, causado uma maior ruína sobre seus inimigos na hora da morte que em sua vida. Cranmer teria desejado prosseguir em sua denuncia das doutrinas papistas, porém os murmúrios dos idólatras afogaram sua voz, e o predicador deu ordem de "Levai este herege!". A selvagem ordem foi obedecida diretamente, e o cordeiro a pastor de sofrer foi arrancado de sua plataforma para ser levado ao matadouro, xingado a todo o longo do caminho, injuriado e escarnecido por aquela praga de monges e frades. Com os pensamentos centrados num objeto muito mais elevado que as vãs ameaças dos homens, chegou ao lugar maculado com o sangue de Ridley e Latimer. Ali se ajoelhou para um breve tempo de fervorosa devoção, e depois se levantou, para tirar a roupa e preparar-se para o fogo. Dois frades que tinham participado da operação de lograr sua abjuração trataram agora de voltar a afastá-lo da verdade, mas ele se mostrou firme e inamovível no que acabava de professar e de ensinar em público. Lhe colocaram uma corrente para amarrá-lo à estaca, e depois de tê-lo rodeado ferreamente com ela, acenderam a fogueira, e as labaredas começaram a subir. Então se fizeram manifestos os gloriosos sentimentos do mártir, quem, estendendo sua mão direita, a manteve tenazmente sobre o fogo até ficar reduzida a cinzas, incluso antes que seu corpo fosse danificado, exclamando com freqüência: "Esta indigna mão direita!" Seu corpo suportou a queima com tal firmeza que pareceu não mexer-se mais que a estaca a qual estava sujeito. Seus olhos estavam fixos no céu, enquanto repetia: "Esta indigna mão direita" durante o tempo que sua voz lhe permitiu, e empregando muitas vezes as palavras de Estevão, "Senhor Jesus, recebe meu espírito", entregou o espírito em meio de uma grande flama. A visão das três escadas de mão Quando Robert Samuel foi conduzido para ser queimado, vários dos que estavam perto dele o ouviram contar estranhas coisas que lhe tinham acontecido durante o tempo de seu encarceramento; como que depois de ter estado quase morrendo ed fome por dois ou três dias, caiu logo num sono como médio adormecido, no qual lhe pareceu ver a um todo vestido de branco diante dele, que o confortou com estas palavras: "Samuel, Samuel, tem ânimo, e alenta teu coração; porque depois deste dia não estarás nem faminto nem sedento". Não menos memoráveis nem menos dignas de menção são as três escadas que narrou a vários que viu em seu sono, que subiam ao céu; uma delas era um tanto mais compridas que as outras duas, porém no final se transformaram numa só, unindo-se as três numa única. Enquanto este piedoso mártir ia para o fogo, se aproximou dele certa donzela, que o abraçou e o beijou; esta, observada pelos que estavam perto, foi buscada no dia seguinte para lançá-la no cárcere e queimá-la, como a mesma moça me informou; contudo, tal como Deus o ordenou em sua bondade, ela fugiu de suas mãos ferozes, e se manteve oculta na cidade durante bastante tempo depois. Mas assim como esta moça, chamada Rose Nottingham, foi maravilhosamente preservada pela providência de Deus, houve não obstante duas honradas mulheres que caíram sob a fúria desatada daqueles tempos. A primeira era a mulher de um cervejeiro, e a outra a mulher de um sapateiro, porém ambas estavam agora desposadas a um novo marido, a Cristo. Com estas duas tinha esta moça já mencionada uma grande amizade; ao aconselhar ela a uma das casadas, dizendo-lhe que devia ocultar-se enquanto tivesse tempo e oportunidade, recebeu esta resposta: "Sei muito bem que para ti é legítimo fugir; este é um remédio que podes utilizar se desejas. Meu caso é distinto. Estou ligada a meu marido, e além disso tenho crianças pequenas em casa; por isso, estou decidida, por amor a Cristo, a manter-me firme até o fim". Assim, no dia seguinte que padecera Samuel, estas piedosas mulheres, uma chamada Anne Ponen e a outra Joan Trunchfield, esposa de Michael Trunchfield, sapateiro de Ipswich, foram encarceradas e lançadas juntas na prisão. Como eram ambas, por seu sexo e constituição, mais bem fracas, foram portanto menos capazes no princípio de resistir a dureza da prisão; e de forma especial a mulher do cervejeiro se viu lançada numas agonias e angústias de mente …

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